segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Travessuras da Menina Má

Quando peguei esse livro do Mario Vargas Llosa na biblioteca da faculdade, peguei também o "A Festa do Bode", do mesmo autor e sobre o qual já falei aqui. Intercalava a leitura dos dois, mas aos poucos fui gostando mais do segundo, e deixei a história do "Ricardito" Somocurcio de lado. Achei o começo chato, a história demorou a engrenar, sei lá. Acredito até que a culpa seja do Ricardito mesmo, tremendo otário...

A menina má em questão é uma camaleoa, alpinista social que topa tudo pra ter a única coisa que realmente traz felicidade e segurança na vida: dinheiro. Ela e Ricardo se conhecem ainda crianças e são muitos os encontros e desencontros dos dois. Ricardo amava tanto a peruanita (não se sabe ao certo o nome dela, de tanto que a maldita mudava de nome, de país, de marido etc.; mas o mais certo é que seu nome verdadeiro era Otília) que tolerou MUITA coisa. Na boa, chega a dar raiva (e olha que sou bem trouxa quando me apaixono).

Foi aí que deu o estalo e eu não consegui mais largar o livro: bateu a síndrome de Roberto Carlos, e eu lia embasbacada tudo o que o imbecil do Ricardo fazia e pensava "esse cara sou eu!". Piadas à parte, a paciência, o carinho, a fé, e acima de tudo, o amor desse cara eram praticamente inabaláveis, mas não consigo dizer se em algum momento ele foi correspondido pela menina má.

O trecho a seguir mostra bem o sofrimento do Ricardito "bom menino" e a desfaçatez da menina má. Não consigo me lembrar de personagem mais forte, fria e dissimulada que ela. Amei. E odiei. Leiam e tirem suas próprias conclusões.


"Cheguei à Ponte Mirabeau literalmente ensopado. Eu nem tinha notado que estava chovendo. Por ali não passavam pedestres nem carros. Avancei até o meio da ponte e sem hesitação me encarapitei na grade metálica, onde, já me preparando para pular - juro que ia fazê-lo -, senti um golpe de vento no rosto e, ao mesmo tempo, duas manzorras que abraçavam as minhas pernas, puxavam e me faziam cambalear e cair de costas, no asfalto da ponte:

- Fais pas te con, imbécile!

Era um clochard que cheirava a vinho e sujeira, meio perdido dentro de um grande impermeável de plástico que lhe cobria a cabeça. Tinha uma barba enorme, de uma cor entre cinza e esbranquiçada. Sem me ajudar a levantar, pôs a garrafa de vinho na minha boca e me fez tomar um gole: era uma coisa quente e forte, que me sacudiu as vísceras. Um vinho passado, quase vinagre. Tive ânsias de vômito mas não vomitei. Fais pas te con, mon vieux - repetiu. E, dando meia-volta, se afastou trôpego com sua garrafa de vinho azedo balançando na mão. Percebi que nunca mais esqueceria aquela sua cara amorfa, aqueles olhos arregalados e congestionados e sua voz rouca, humana.

Voltei caminhando para a rue Joseph Granier, rindo de mim mesmo, cheio de gratidão e admiração por aquele vagabundo bêbado da Ponte Mirabeau que tinha salvado a minha vida. Eu ia pular, certamente teria pulado se ele não me impedisse. Estava me sentindo estúpido, ridículo, envergonhado, e tinha começado a espirrar. Toda aquela palhaçada barata ainda ia terminar num resfriado. Os ossos das minhas costas doíam com a pancada no chão e eu só queria dormir, dormir o resto da noite e da vida. Ao abrir a porta do apartamento vi um fiozinho de luz lá dentro. Atravessei a salinha de jantar em dois pulos. Da porta do quarto divisei a menina má, de costas diante do espelho da cômoda, experimentando o vestido de bailarina árabe que eu tinha comprado no Cairo e que ela certamente nunca usara. Deve ter me ouvido chegar, mas não se virou. Era como se um fantasma houvesse entrado no quarto.

- O que está fazendo aqui? - disse, gritei ou rugi, paralisado na entrada, sentindo que minha voz soava muito estranha, como a de um homem sendo estrangulado.

Com muita calma, como se nada estivesse acontecendo e toda aquela cena fosse a coisa mais corriqueira do mundo, a figurinha morena, seminua, envolta em véus, de cuja cintura caiam umas fitas que podiam ser de couro ou correntinhas, virou-se de lado e olhou para mim, sorrindo:

- Mudei de idéia e estou de volta. - Falava como se me contasse uma intriga de salão. E, passando para coisas mais importantes, apontou o vestido e explicou: - Estava um pouco grande, mas acho que agora ficou bem. Como cai em mim?

Não pôde dizer mais nada porque eu, não sei como, atravessei o quarto num pulo e a esbofeteei com todas as minhas forças. Vi um brilho de pavor nos seus olhos, vi que ela oscilava, tentava se apoiar na cômoda, caia no chão e depois dizia, ou talvez gritasse, sem perder totalmente a serenidade, aquela sua calma teatral:

- Você está aprendendo a tratar as mulheres, Ricardito.

Eu tinha caído no chão junto com ela e a sacudia pelos ombros, enlouquecido, vomitando meu despeito, minha fúria, minha estupidez, meus ciúmes:

- Eu só não estou agora no fundo do Sena por milagre, e a culpa é sua, só sua - as palavras se atropelavam na boca, minha língua travava. - Nestas últimas 24 horas você me fez morrer mil vezes. De que está brincando comigo?, diga. Foi para isso que me ligou, que me procurou, quando eu já tinha me libertado de você? Até quando acha que vou agüentar? Eu também tenho meus limites. Dá vontade de matar você.

Nesse momento percebi que, de fato, poderia matá-la se continuasse sacudindo a menina má daquele jeito. Assustado, soltei-a. Ela estava lívida e olhava para mim, de boca aberta, protegendo-se com os braços levantados.

- Não estou reconhecendo, este não é você murmurou, e sua voz sumiu. Começou a massagear a bochecha e a têmpora direita que, à meia-luz, pareciam inchadas.

- Estive a um triz de me matar por sua causa - repeti, com a voz impregnada de rancor e de ódio. - Subi no parapeito da ponte para me jogar no rio e um clochard me salvou. Um suicida, era o que faltava no seu currículo. Você pensa que vai continuar brincando assim comigo? Parece que só matando um de nós dois vou conseguir me libertar para sempre.

- Mentira, você não quer se matar nem me matar - disse, arrastando-se na minha direção. - Você quer é trepar comigo. Não é mesmo? Eu também quero. Ou, se esse termo o incomoda, quero que faça amor comigo. Era a primeira vez que ouvia esse palavrão na sua boca, um verbo que não escutava fazia séculos. Ela tinha se erguido um pouco para se acomodar nos meus braços e apalpava a minha roupa, escandalizada: "Você está todo encharcado, vai pegar um resfriado, tire logo essa roupa molhada, bobinho."

 "Se você quiser, me mata depois, mas faça amor comigo, agora mesmo." Tinha recuperado a serenidade e agora já era dona da situação. O coração quase me saía pela boca, eu mal podia respirar. Pensei que seria idiota ter um ataque justamente nesse momento. Ela me ajudou a tirar o paletó, a calça, os sapatos, a camisa - tudo parecia ter saído de dentro d'água - e, enquanto isso, passava a mão pelo meu cabelo na estranha, única carícia que às vezes se dignava a me fazer. "Como bate o seu coração, bobinho", disse, instantes depois, encostando a orelha no meu peito. "Fui eu que deixei você assim?" Eu também tinha começado a acariciá-la, antes mesmo de ter dominado a raiva. Mas esse sentimento se misturava agora com um desejo crescente que ela atiçava - tinha tirado o vestido de bailarina e me enxugava, deitada em cima de mim, movendo-se sobre o meu corpo - enfiando a língua na minha boca, fazendo-me engolir sua saliva, apanhando meu sexo, acariciando-o com as duas mãos e, por fim, encolhendo-se como uma enguia sobre si mesma, levando-o à boca. Eu a beijei, acariciei e abracei sem a delicadeza das outras vezes, mas com rudeza, ainda ferido, dolorido, e por fim obriguei-a a tirar o meu sexo da boca e ficar embaixo de mim. Abriu as pernas, docilmente, quando sentiu que meu membro rígido lutava para entrar nela. Penetrei-a com brutalidade e a ouvi uivar de dor. Mas não me rejeitou e, com o corpo tenso, esperou, soltando queixumes, gemendo baixinho, que eu ejaculasse. Suas lágrimas molhavam a minha cara e eu as lambia. Ela estava extenuada, com os olhos arregalados e o rosto transfigurado de dor.

- É melhor você ir embora, sumir de verdade - implorei, tremendo dos pés à cabeça. - Hoje estive a ponto de me matar, e depois quase matei você. Não quero isso. Vá, procure outro, alguém que faça você viver intensamente, como Fukuda. Alguém que chicoteie você, que a empreste para seus asseclas, que a faça engolir pós e depois soltar peidos no seu focinho imundo de porco. Você não foi feita para morar com um santarrão chato feito eu. Ela havia passado os braços em volta do meu pescoço e me beijava na boca enquanto eu falava. Todo o seu corpo se movia para ajustar-se mais ao meu.

- Não vou embora, nem agora nem nunca - sussurrou no meu ouvido.

- Não me pergunte por quê, não vou dizer nem morta. Jamais vou dizer que amo você, por mais que ame.

Nesse momento devo ter desmaiado, ou dormido de repente, mas já desde suas últimas palavras eu sentia que as forças me abandonavam e tudo começava a girar. Acordei muito depois, no quarto às escuras, sentindo uma forma morna metida dentro de mim. Estávamos deitados, debaixo dos lençóis e cobertores, e pela clarabóia do teto vi umas estrelas cintilando. Havia parado de chover há muito tempo, sem dúvida, porque os vidros já não estavam embaçados. A menina má continuava grudada no meu corpo, com as pernas enredadas nas minhas e a boca encostada na minha bochecha. Senti seu coração; pulsava, compassado, dentro de mim. A cólera havia evaporado e eu agora estava cheio de arrependimento por tê-la agredido e magoado, apesar de amá-la. Beijei seu rosto com ternura, tentando não acordá-la e sussurrei bem baixinho em seu ouvido: "Amo você, amo você, amo você." Não estava dormindo. Apertou-se contra mim e disse, colocando os lábios sobre os meus, enquanto sua língua bicava a minha entre uma palavra e outra:

- Você nunca vai viver sossegado comigo, estou avisando. Porque não quero que você se canse de mim, que se acostume comigo. Vamos nos casar para arrumar meus papéis, mas nunca serei sua esposa. Quero ser sempre sua amante, sua cachorra, sua puta. Como esta noite. Porque assim vai ficar sempre louquinho por mim.

Falava essas coisas me beijando sem trégua e tentando se meter inteira dentro do meu corpo
."
 Mario Vargas Llosa*

* Achei essa entrevista do Llosa, concedida à época do lançamento do livro, pra Folha. Tô lendo mais um livro dele "Pantaleão e as Visitadoras", e conto mais sobre ele quando terminar.  


Nenhum comentário:

Postar um comentário