quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A Festa do Bode

"[...] Foi o padre Rodríguez Canela que lhe disse a data: 3 de agosto de 1961. Haviam passado só três meses! Para ele o pesadelo parecia durar séculos. Deprimidos, enfraquecidos, humilhados, falavam pouco entre si, e as conversas giravam sempre em torno do que haviam visto, ouvido e vivido na El Nueve. De todos os testemunhos de seus companheiros de cela, Salvador ficou impressionado, de forma indelével, com a história que contou Modesto Díaz entre soluços. Nas primeiras semanas, teve Miguel Ángel Báez Díaz como companheiro de cela. O Turco lembrava de sua surpresa, em 30 de maio, na estrada para San Cristóbal, quando esse personagem apareceu junto ao seu Volkswagen garantindo-lhes que Trujillo, com quem ele havia caminhado na avenida, viria, e soube assim que esse grande senhor da elite trujillista também estava na conjuração. Abbes García e Ramfis ficaram tão enlouquecidos com ele, por haver estado tão perto de Trujillo, que presenciaram as sessões de cadeira elétrica, os açoites e as queimaduras que lhe infligiam, dizendo aos médicos do SIM que o reanimassem para continuar. Duas ou três semanas depois, em vez do habitual prato fedido de farinha de milho, trouxeram ao calabouço uma panela com pedaços de carne. Miguel Ángel Báez e Modesto engasgaram, comendo com as mãos até se fartar. O carcereiro voltou a entrar pouco depois. Encarou Báez Díaz: o general Ramfis Trujillo queria saber se não lhe dera nojo devorar seu próprio filho. Do chão, Miguel Ángel insultou: 'Pode dizer a esse imundo filho da puta que morda a língua e se envenene'. O carcereiro começou a rir. Saiu e voltou, mostrando-lhes, da porta, uma cabeça de criança que segurava pelos cabelos. Miguel Ángel Báez Díaz morreu horas depois, nos braços de Modesto, de um enfarto. [...]"

O trecho acima é só uma das passagens perturbadoras do livro "A festa do Bode", do Mario Vargas Llosa, que mistura realidade e ficção pra contar a história da dominicana radicada nos EUA Urania Cabral, que retorna a sua terra natal pra visitar seu pai. Urania deixou Santo Domingo, capital da República Dominicana, quando tinha 14 anos e a cidade então se chamava Ciudad Trujillo, em homenagem ao "Pai da Pátria Nova", o bode da história, Rafael Leonidas Trujillo Molina.

De cara, a gente já saca que não é só isso. Urania não queria voltar. Agora com 40 e poucos anos e bem sucedida profissionalmente, ela ainda não entendeu exatamente porque quis voltar a pisar no país de onde ela praticamente fugiu, e que jurou que não pisaria nunca mais. Isso já é o suficiente pra que a gente queira continuar lendo, afinal o autor vai liberando os detalhes aos poucos, a história é contada meio que num estilo "flashback": a narrativa é não-linear, num momento estamos nos dias atuais, Santo Domingo, noutro estamos em 1961, Ciudad Trujillo. Nos dias atuais, acompanhamos Urania em seu momento-revival, revendo a cidade, o pai (que ela odeia e também não sabemos por que), as primas. Em 1961, acompanhamos os preparativos da conjuração para matar o bode Trujillo. 

E não é só o tempo que muda, mas os pontos de vista também. Nos dias atuais, acompanhamos Urania. Em 1961, acompanhamos todos os principais envolvidos no golpe de Estado fail. É, foi master fail, mas não vou falar aqui o porquê.

Peguei dois livros do Llosa pra ler durante as férias: "Travessuras da Menina Má" e "A festa do Bode". Comecei pelo da menina má e larguei. A leitura demorou a engrenar, achei o personagem muito fraco...Felizmente, dei outra chance pro livro, porque o final foi maravilhoso. Prometo que vou falar dele aqui depois. Mas durante essa pausa que dei no livro da menina má, li esse do bode e não consegui parar. O tema é forte, a narrativa é dinâmica - já que a cada momento é conduzida a partir do ponto de vista de um personagem diferente - os personagens são interessantes, com suas motivações, angústias, segredos...Acredito que seja tudo isso combinado que faz com que esse livro seja tão bom.

Mas da metade do livro em diante, é preciso sangue frio pra continuar. O trecho que citei aqui é um dos muitos que causam desconforto e revolta. Fiquei tão puta que fui pesquisar sobre a história da ditadura dominicana, ler sobre o Trujillo e o bando de putos puxa-sacos que trabalhavam pra ele, e o que aconteceu com os que participaram da tentativa de derrubá-lo, só pra ver se me sentia um pouco melhor. Não ajudou muito, não.

Não ajudou porque é uma história que se repete. Nós mesmos, na década de 1960, estivemos sob uma ditadura militar que matou um monte de gente e que tem histórias tão escabrosas quanto a do Miguel Ángel. Ditadura essa que durou 21 anos e que, vez ou outra no Facebook, vejo gente falando que não foi tão ruim assim, que o país era melhor naquela época, blah blah fucking blah. Tivemos ditaduras na Argentina, no Chile...E elas cooperavam entre si, dedurando e prendendo os considerados "subversivos", pessoas perseguidas por terem cometido o "crime" de falar mal do governo. Uma vez presas, eram torturadas e assassinadas brutalmente. Famílias continuam na luta por informações de seus entes queridos desaparecidos durante as ditaduras desses países até hoje, simplesmente porque seus governos não cooperam, não divulgando detalhes dessas prisões arbitrárias, ou conduzindo "comissões da verdade" que não levam a lugar nenhum.

Costumo tentar manter uma visão mais otimista em relação ao ser humano, mas histórias como essas me deixam....triste. Saber que tem gente capaz desse tipo de coisa me deixa triste. Me faz pensar no zilhão de coisas que acontecem no mundo que mostram o quão desprezíveis nós somos, como somos capazes de coisas terríveis, pelos motivos mais fúteis. Acho que já citei Voltaire aqui, falando que "o homem se torna mau como se torna doente", o que significa que ninguém nasce mau, e mais, que existe possibilidade de recuperação, de cura. E são tantos os exemplos de pessoas boas, gente que, sei lá como, sei lá por quê, foi boa, justa, caridosa, fez a diferença na vida de outras pessoas, fez a diferença no mundo...e morreu assassinada, tipo Gandhi. É foda...

Mas nem por isso vou perder a fé na humanidade, vai.

Então, fica a dica de leitura. Pra quem ainda não conhece a obra do Mario Vargas Llosa, pra quem já conhece mas ainda não leu esse livro, pra quem gosta de histórias que envolvem ditaduras sanguinárias, ou pra quem só quer mais um motivo pra se emputecer com os seres humanos cruéis e filhos das putas. Livro bom é livro que mexe assim com a gente, que perturba, instiga, faz rir, chorar, pesquisar a história no Google - sou doida mesmo, foda-se - infernizar a vida dos amigos falando dos personagens. Valeu muito a pena. Fiquei sem dormir direito por um tempo, mas valeu.

P.S.

Criei um perfil no Skoob e montei minha estante virtual lá. O livro sobre o qual falei neste post tá aqui e o link pro meu perfil pra que vejam minha estante tá aqui.