sábado, 2 de novembro de 2013

O lugar das definições

Ainda na pegada de citar aqui meus livros favoritos. A passagem desse post é de um livro já mencionado no blog, o "Hell's Angels", do porralôca Hunter S. Thompson.

Já tava a fim de postar esse trecho aqui há um tempo. Pra mim, ele é a síntese de tudo o que eu imagino que um texto tem que ter pra fazer o leitor viajar. Porra, livro tem que fazer isso: você tem que ler e se imaginar lá onde tá rolando a história, e reconhecer as personagens como se fossem velhas conhecidas suas, e sentir sabores e cheiros e alegrias e medos; e rir em cumplicidade com o autor ou das histórias e situações, chorar nas passagens tristes da narrativa e, claro, sentir um ódio mortal dos vilões e personagens antipáticos. E quando acabar, tem que te fazer refletir sobre tudo o que acabou de ler. E pensar: na história, no rumo que cada personagem tomou, e o que você faria se estivesse no lugar de um deles (ou, por que não?, no lugar do autor). E depois de pensar muito, e saborear as últimas palavras, se despedir dele com um suspiro e soltar um "que livro foda!", com a certeza de que vai levar pra vida pelo menos um trechinho dele.

Desse livro do Thompson, esse é o trecho que vou levar pra vida. Uma passagem bem escrita, emocionante, excitante...Tava no trem de manhã, indo pro trabalho, e esse trecho me levou pra longe dali, pra onde só voltei quando já estava chegando na estação em que ia descer. E eu fechei o livro e "Caralho...caralho, que livro foda...", e não queria terminar (faltava o posfácio, de uma folha só). Como doeu me despedir desse livro...

Sem mais delongas, minha passagem favorita do "Hell's Angels". Prestem atenção na forma como ele descreve esse rolê de moto durante a noite. É SÓ UM ROLÊ DE MOTO. Mas vejam como ele narra esse rolê, o que ele sente, o que ele vê, e o que ele extrai das sensações experimentadas por ele nesses passeios noturnos suicidas. Eu morro de medo de motos mas fiquei louca de vontade de fazer um rolê desse. Só se for de Harley, claro.


"Toda a minha vida meu coração buscou
 algo que não sei nomear.
Verso lembrado de um poema   
esquecido há muito tempo   

Meses depois, quando dificilmente via os Angels, eu ainda tinha o legado da grande máquina: 180 quilos de cromo e um ruído enfurecido para ir à Coast Highway e sair sem rumo às três da madrugada, quando todos os policiais estavam espreitando a Rodovia 101. A minha primeira batida havia acabado totalmente com a moto e foram necessários alguns meses para reformá-la. Depois disso decidi andar de um jeito diferente: ia parar de abusar da sorte nas curvas, usar sempre o capacete e tentar me manter próximo do limite de velocidade...meu seguro já havia sido cancelado e a minha carteira de motorista estava por um fio.
Então era sempre de madrugada, como um lobisomem, que eu saía com a coisa para um passeio decente pela costa. Eu começava no Golden Gate Park, pensando apenas em percorrer algumas longas curvas para esfriar a cabeça...Mas, em questão de minutos, eu estava na praia com o som dos motores nos meus ouvidos, as ondas arrebentando no quebra-mar e uma bela estrada vazia que ia até  Santa Cruz...nem sequer um posto de gasolina num trecho de cem quilômetros. A única iluminação pública no caminho é a de uma lanchonete 24 horas perto da praia de Rockaway [nota da blogueira: nessa parte eu penso nos Ramones]. Nessas noites não havia capacete, limite de velocidade e nada de pegar leve nas curvas. A sensação de liberdade momentânea do passeio no parque era como o drinque infeliz que faz o alcoólatra hesitante ter uma recaída. Eu saía do parque perto do campo de futebol, fazia uma breve pausa diante da placa de "pare" e me perguntava se conhecia alguma daquelas pessoas que estavam dentro dos carros estacionados na faixa da trepada da meia-noite.
Depois eu colocava a primeira marcha, esquecia os carros e deixava a fera se soltar...60, 70 km/h...depois a segunda, resmungando para passar pelo sinal da Lincoln Way, sem me preocupar se estava verde ou vermelho, mas apenas atento a algum outro lobisomem maluco que estivesse saindo, devagar demais, para começar sua jornada. Não há muitos...e, com três pistas numa curva ampla, uma moto vindo com tudo tem muito espaço para desviar de quase qualquer coisa...depois a terceira, a marcha da potência, chegando a 120 km/h e ao começo dos gritos estridentes do vento no ouvido, uma pressão no globo ocular como um mergulho na água de um trampolim bem alto.
Inclinado para a frente, sentado na parte de trás do banco e segurando firme o guidão quando a moto começa a tremer e sacudir no vento. Luzes traseiras muito distantes se aproximam rápido e, de repente - zaaapppp -, passo e inclino a moto numa curva perto do jardim zoológico, onde a estrada abre para o mar.
As dunas são mais planas aqui e, nos dias em que venta muito, a areia atravessa a rodovia, aglomerando-se em depósitos espessos tão fatais quanto qualquer óleo na pista...perda de controle instantânea, uma batida, derrapagem e capotagem, e talvez uma daquelas notinhas de cinco centímetros no jornal do dia seguinte: 'Um motociclista não identificado morreu ontem à noite por não conseguir transpor uma curva na Highway I'.
É verdade...mas dessa vez não havia areia, então o pedal vai para cima, para a quarta, e agora não se ouve nenhum som a não ser o do vento. Todo esticado, tateando o guidão para elevar o feixe do farol, o ponteiro encosta no 160, e os globos oculares ardentes lutam para enxergar o centro da pista mesmo com a pressão do vento. É preciso deixar uma margem para os reflexos.
Mas com o acelerador no máximo a margem é muito pouca, e não existe nenhuma possibilidade de erro. Tudo tem que ser feito certo...e é aí que a música estranha começa, quando você abusa tanto da sorte que o medo se transforma em alegria e vibra pelos seus braços. A 160 km/h, mal dá para enxergar, as lágrimas são jogadas para trás tão rápido que evaporam antes de chegarem às orelhas. Os únicos sons são o do vento e um zunido surdo que vem dos amortecedores. Você vê a linha branca e tenta virar junto com ela...urrando numa curva para a direita, depois para a esquerda e na longa descida para Pacifica...menos intenso agora, atento para a presença da polícia, mas só até o próximo trecho escuro e mais alguns segundos no limite...O Limite...Não existe nenhuma forma genuína de explicá-lo porque as únicas pessoas que realmente sabem onde ele está são aquelas que o ultrapassaram. As outras - as vivas - são as que forçaram seu controle até onde sentiram que podiam aguentar, e depois recuaram, ou reduziram a velocidade, ou fizeram o que quer que tinham que fazer quando chegou o momento de escolher entre o Agora e o Depois.
Mas o limite ainda está Lá. Ou talvez Aqui. A associação que se faz entre motocicletas e LSD não é um acidente de publicidade. Os dois são meios para se chegar a um fim, ao lugar das definições."

Fonte da imagem: Visual Diary

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