sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Nosce te ipsum


-Quem és tu? - perguntou Sofia.
De novo não recebeu nenhuma resposta, mas por um breve momento não soube se tinha sido ela ou o seu reflexo no espelho a fazer a pergunta. Sofia tocou com o indicador no nariz refletido no espelho e disse:
-Tu és eu. Não recebendo resposta alguma, inverteu a frase:
- Eu sou tu.
Semana passada, como atividade da aula de Filosofia, a profª Luci pediu que respondêssemos à pergunta "Quem sou eu?". Ela chegou na sala e escreveu no quadro "Conhece-te a ti mesmo". Não, não era da música "Garota Nacional" do Skank que ela tava falando. Essa frase Sócrates viu na entrada do templo de Delfos, o oráculo que disse que ele era o homem mais sábio da Grécia. Modestíssimo, Sócrates respondeu: "Só sei que nada sei". Somos dois.

Desde então tô aqui, tentando responder a essa pergunta. Toda vez que preencho um cadastro pra criar login em algum lugar e me deparo com um "Quem sou eu", coloco sempre a mesma frase: "I'm one of those regular weird people", da Janis Joplin. Sou uma dessas pessoas estranhas comuns mesmo, não de uma estranhice muito...estranha. Mas se eu fosse responder como a Sofia de "O Mundo de Sofia" do Jostein Gaarder, me atentaria ao meu nome e às minhas características físicas. Ou então, faria como a Enriqueta nessa tira do Liniers:

Posso me descrever fisicamente, psicologicamente, posso dizer do que eu gosto e do que não gosto, mas tais características não dizem quem sou eu, apenas me definem. E o que é definir? "Definir é limitar", responderia Lord Henry do livro "O Retrato de Dorian Gray", do Oscar Wilde. Tá, procede, mas falando sério agora: o que é definição, afinal? Dicionário, onde estás? Apincelar, brochador (aquele que brocha livros, tive que parar pra ler esse), canabrás, definhar...DEFINIÇÃO! Achei. "S.f. 1. Ato ou efeito de definir(-se). 2. Expressão com que se define. 3. Explicação precisa; significação. 4. Exposição, descrição, enunciação. 5. Decisão, resolução. 6. Qualidade duma visão ou duma fotografia em que os detalhes são nítidos e os contrastes marcados. Ahn, entendi. E "definir"? Dentre outras coisas, diz o dicionário Aurélio que definir é "enunciar os atributos essenciais e específicos de (uma coisa), de modo que a torne inconfundível com outra". Sim, nossas características nos tornam únicos, mas quem somos nós? Eu deixaria de ser eu se tivesse nascido na Áustria? Eu seria menos eu se não fosse fã de Led Zeppelin, se não tivesse lido Simone de Beauvoir?

- Ana, tenho que escrever um texto pra profª de Filosofia. Ela quer saber quem sou eu e disse que a gente podia perguntar pros amigos. Me ajuda?
- Tenho que dizer como eu te vejo...mas fisicamente?
-  Na sua opinião, quem eu sou? Como eu sou? Se vem detalhe físico antes de psicológico, não importa...vai falando.
- Você sou eu com 50% a mais de nóias. Tem um senso de humor beeeeeeem peculiar, que nem eu... muito parecido...Ah, sei lá. Só sei comparar comigo... tipo, não sei falar só de você.

Pra Ana, sou ciumenta, sou branca demais ("você é bonita, mas quando usa branco...parece um copo de leite!"), passo a imagem de brava apesar de não ser e gosto de caras "estranhos". E talvez eu ouça essas mesmas coisas se perguntar pra qualquer outra amiga ou amigo quem sou eu. Ou não, como diria Caetano Veloso. Percebeu quão safada é a pergunta? Sócrates percebeu.

Marilena Chauí, no livro "Convite a Filosofia", diz o seguinte: "A opinião varia de pessoa para pessoa, de lugar para lugar, de época para época. É instável, mutável, depende de cada um, de seus gostos e preferências. O conceito, ao contrário, é uma verdade intemporal, universal e necessária que o pensamento descobre, mostrando que é a essência universal, intemporal e necessária de alguma coisa". Quando Sócrates saía pelas ruas e praças de Atenas pentelhando meio mundo perguntando "O que é isso?", "O que você tá fazendo?", "Você sabe o que é isso que você tá dizendo?", ele buscava uma definição, uma essência, um conceito. E ficava todo mundo inicialmente puto, depois curioso e por fim com cara de bunda, porque sacava que não sabia de nada. Por meio de perguntas simples, dentro de um determinado contexto, Sócrates primeiro fazia com que você, pela primeira vez na vida talvez, duvidasse daquilo que achava conhecer bem, dominar. Depois, fazia com que você por si só concebesse novo conceito a respeito do assunto em questão e, bingo, tava feito o "parto intelectual". O nome disso é maiêutica, que significa "dar à luz", pois Sócrates achava que o que ele fazia era semelhante a profissão da mãe dele, que era parteira. Ou seja, o conhecimento tá dentro de cada um de nós (mestre Yoda feelings), e são esses questionamentos que trazem ele a tona.

Lembra do "Conhece-te a ti mesmo" do Templo de Delfos e do quadro da profª? Sócrates acreditava que a gente deve se ocupar mais com nós mesmos do que com coisas como poder e riqueza, pois esse é o caminho pra encontrarmos a verdade. "É esse ato de conhecimento, capaz de promover nossa autotranscendência [...]. Conhecer a mim mesmo para saber como modificar minha relação para comigo, com os outros e com o mundo", diz Josué Cândido da Silva, professor de filosofia da Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus, BA no seu texto de filosofia na página do UOL Educação. Mas como, profº Josué? "[...] o estado de iluminação, de descoberta da verdade, não é produto do estudo, mas de uma prática acompanhada de reflexão constante sobre minhas ações, atitudes - e de como posso modificá-las para me tornar uma pessoa melhor".

Então, se a pergunta "Quem sou eu?" caísse na Fuvest, a alternativa correta seria "todas as anteriores". Porque eu sou meu nome, a Sofia no espelho, a Enriqueta escrevendo lembrete caso tenha amnésia, a leitora de Beauvoir e a fã de Led Zeppelin. Sou a amiga branquela, bonita, ciumenta, com cara de brava e humor peculiar da Ana. Sou a "estranha comum" da Janis Joplin e mais um monte de coisas que não caberiam aqui, tudo junto e misturado nisto que me acostumei a chamar de EU. E ao me refletir no espelho como Sofia, mas por dentro, vejo todos os comportamentos bons e não tão bons, os conceitos e preconceitos que adquiri até hoje, o conhecimento que acumulei e as opiniões que formei e vou mudar ao longo da minha vida. E se conseguir me moldar, me aperfeiçoar até atingir o conceito, a idéia que tenho de mim, terei atingido minha verdade. Pois como disse Agrado, personagem do filme "Todo Sobre mi Madre", de Pedro Almodóvar, "una es más auténtica cuanto más se parece a lo que ha soñado de si misma".

Um comentário:

  1. adorei........... filosofou, gritou, esperneou, racionalizou........ e não respondeu.... ou respondeu
    gostei muito :) parabéns

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