segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O sonho acabou (?)

Vi esse texto da Amarilis Lage de Macedo já faz um tempo na página do Alexandre Versignassi. Vale a pena ler. Acredito que é uma sensação pela qual todo mundo passou, passa ou vai passar na vida.


"Explica essa, Susan Miller
Ou
O primeiro corte é sempre o mais profundo

“Susan Miller was right.” É isso o que todo mundo diz, e quem sou eu para dizer que não? Bem que ela falou que o período entre os dias 9 e 23 de março seria especial para os leoninos, em termos profissionais. Algo a ver com a presença de Vênus, Mercúrio e Marte no setor de carreira e reputação. “Estou muito feliz em contar para você que Marte estará em conjunção com o Sol, dando a você coragem, determinação e direcionamento”, disse Susan. “Isso significa que maio será o melhor mês de 2013 para seu progresso na carreira.” Então, no dia 23 de maio, às 12h23, meu chefe me chamou para a saleta de reuniões e, com os olhos cheios d’água, comunicou que haveria um corte gigantesco na empresa e que meu nome estava na lista.
É estranha a tranquilidade que toma conta da gente nessas horas. Uma espécie de nirvana, causada pela beleza da compreensão: as peças vão se juntando – uma conversa no corredor, as longas reuniões, a angústia no olhar de alguém – e a imagem se forma diante de seus olhos com tanta clareza que parece uma pomba branca voando em câmera lenta com aquela luz de Deus ao fundo.
Aí você caminha até a sua mesa, ainda pisando nas nuvens, desliga o computador, pega as suas coisas e se dirige ao elevador, como se estivesse apenas indo almoçar. Um grande senso de praticidade – daquele tipo que sempre nos falta no dia a dia – se instala como uma pedra. E ele se resume, em linhas gerais, a deixar tudo para amanhã.
Passar no RH para assinar os papéis – amanhã. Arranjar uma caixa de papelão para guardar os badulaques (incluindo uma estimada caneca de “Rock of Ages”) – amanhã. Encarar os abraços dos amigos e sorrir quando eles disserem que vai dar tudo certo – amanhã.
Resolvida essa parte, resta uma tarde inteira que, infelizmente, não pode ser transferida para o dia seguinte. Todas as fantasias de vagabundagem que rondavam sua cabeça diante do computador perdem, automaticamente, o encanto. A mais óbvia – ir ao cinema – exigiria uma inalcançável capacidade de concentração. Começar a ler “Guerra e Paz”, também. Ver televisão remete a um derrotismo precoce, e caminhar à toa por aí está fora de cogitação – você não quer olhares piedosos em sua direção. Sim, é uma preocupação paranoica, mas já basta lidar com o espanto no rosto do porteiro ao ver você chegando em casa no início da tarde.
Em casa, você conta pela primeira vez o que aconteceu. E, ao ouvir as palavras que saem de sua própria boca, sente como se também estivesse recebendo a notícia.
“Fui demitida.” E, antes que sua competência venha a ser questionada. “Foi um corte. Disseram que vai chegar a 50 pessoas. Que vai ser um massacre.” Saber que não estou sozinha, que há outras vítimas, traz um conforto meio deslocado, que não se ajeita direito no coração.
“Você só pode estar brincando.”
“Não estou, não.”
“Mas eu não posso acreditar!”
E ali estão elas, todas as emoções que fugiram de você, borbulhando no corpo de outra pessoa: incredulidade, raiva, mágoa, medo, ansiedade. Não seria bom já mandar o currículo para algum lugar? Devemos cancelar a TV a cabo e a faxineira? Quanto dinheiro você tem no banco? Como vai contar para a sua mãe?
Nessa hora, você se lembra de Susan Miller e, com o mesmo esforço que ela dedica à interpretação dos astros, tenta interpretar melhor as palavras da previsão. A coisa sai mais ou menos assim:
“Não se preocupe. Pensei sobre o assunto e cheguei à conclusão de que isso foi um sinal. Um bom sinal. Alguma coisa muito melhor está a caminho para mim, e a vida está criando as condições necessárias para que essas novidades ocorram, entende?”
Silêncio.
“Bom, tomara que seja isso mesmo.”
Silêncio.
Lá pelo fim do dia, vem uma crise de choro e a sensação de febre, seguida por um estado de torpor. E as coisas vão se intercalando até que, soterrada por 82 camadas de choro e catatonia, você começa a pensar no que vai fazer dali para frente.
Sobrevoando os pensamentos, como um abutre, circula uma lembrança. É a história de uma pessoa próxima cujo último emprego formal foi em meados dos anos 90. Desde então, ela se dedica a coisas que parecem emprego, mas não são: participar de associação de moradores, promover abaixo-assinado na internet e enviar longos comentários para as seções de cartas dos jornais. De que modo essa pessoa paga suas contas ou de onde tira a energia para levantar da cama de manhã, é algo que eu nunca soube. E assim se passaram quase vinte anos.
É preciso agir, mas como? A coisa não anda fácil para ninguém, ainda mais para aqueles que, movidos por uma certa mistura de responsabilidade política, curiosidade antropológica e veleidade artística, saíram da faculdade com um diploma de jornalismo. “Não há profissão mais fascinante que a de jornalista, e não há personagens mais românticos que os jornalistas”, diz Graciela Mochkofsky na Piauí deste mês.
Dez anos de estrada foram suficientes para ver jornais e revistas colocando em ação todos os tipos de plano para evitar o naufrágio: blogs, brindes, concursos culturais, festas, prêmios, premières, pesquisas, projetos gráficos em cima de projetos gráficos, fotos maiores, fotos menores, textos menores, textos maiores...
E o número de leitores só diminuía – o que não deixa de ser admirável quando se leva em conta todo o tempo, paciência e firmeza que são necessários para cancelar a assinatura de um jornal ou revista. Já tentei várias vezes, e só tive motivação suficiente para ir até o fim no caso da Veja.
Para minimizar o prejuízo, de tempos em tempos algum veículo anuncia seu passaralho, e a notícia voa pelas redações a todo vapor. Quem sobrevive logo sai a campo ajudando a reerguer os feridos, com convites para café e ofertas de freelas. Até que chega a sua vez, e o desemprego deixa de ser um dado estatístico (cerca de 6%, segundo o IBGE) para fazer de você uma mocinha de novela mexicana.
Conseguir uma vaga em outra redação, no atual cenário, parece improvável e, mais que isso, meio assustador. Seria como voltar (de novo) para os braços daquele cara excitante, inteligente, mas completamente inseguro, que não sabe o que quer da vida e que, depois de meses envolvendo você nos problemas que ele tem com a mãe, com o vizinho, com o mecânico e com a faxineira, some sem maiores explicações.
Mantendo a analogia, viver como freelance equivale a passar pela mesma situação, com dez caras diferentes (incluindo aquele que ainda não definiu sequer se está de olho em homens ou em mulheres), tudo ao mesmo tempo agora.
Minha mãe quer saber quando vou casar na igreja e ter filhos, ou seja, quando foi acolher sua sábia sugestão de prestar um concurso público e alcançar a famosa estabilidade. Sem muita empolgação, às vezes concordo em dar uma olhada nos editais. Diante da relação de assuntos para a prova, é difícil não lembrar que ela também recomendou, um dia, que eu fizesse faculdade de direito.
Anos atrás, tive aulas de direito internacional com um advogado que se referia ao golpe de 64 como “revolução”. Fazia parte da grade de um cursinho preparatório para o Rio Branco. Uma das dicas marcantes que recebi ali foi essa: na redação, escrever o que os avaliadores gostariam de ler – e não necessariamente o que você achava sobre o assunto. Não é todo dia que a gente se depara com uma mistura tão boa de honestidade e hipocrisia, certo?
De todo modo, não cheguei até a fase da redação, e o convite para um novo emprego se sobrepôs aos planos de trabalhar numa embaixada no Oriente Médio. O Brasil perdia, assim, mais uma candidata ao funcionalismo público. Não que eu vá fazer falta – o sonho de milhões de brasileiros é conseguir um cargo (qualquer cargo) no governo. Não o meu.
De pijama no sofá, jantando um resto de bolo de banana, você se dá conta de que também não faz o tipo empreendedor. Lá no guarda-roupa, tem uma caixa cheia de bijuterias que foram feitas para conseguir uma grana extra num momento de aperto e que jamais foram vendidas. É difícil imaginar algo mais constrangedor do que tentar vender alguma coisa para alguém.
Além disso, você também não tem dinheiro para investir no que quer que seja (como um quiosque da Empada Brasil) nem vai conseguir atrair um sócio endinheirado com uma ideia genial. Todas as grandes ideias que você teve já foram reivindicadas por alguém antes, como a pizza de chocolate.
A esperança de pelo menos dormir até mais tarde, até 2018, no mínimo, também não se concretiza. Lá está você, no meio da madrugada, com os olhos no teto, pensando na morte da bezerra. E agora, Susan Miller? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou. Agora você que se vire para salvar sua reputação de astróloga renomada internacionalmente. Quanto a mim, vou levantar, fazer um café e ler o jornal. Pelo menos isso: agora vou ter tempo para ler o jornal, do começo ao fim. E até checar, com uma pontada de ironia e ansiedade, o que o horóscopo me reserva para os próximos dias.
"
O texto da Graciela Mochkofsky ao qual a Amarilis se refere é esse aqui. Belíssimo texto, por sinal. Tava falando com a Ana sobre esse idealismo que jornalista tem, e que, pelo menos no nosso caso, não ficou pra trás nos primeiros semestres de curso, ou nos primeiros contatos com a realidade da profissão através dos estágios-exploração (pleonasmo?). E esse é o motivo pelo qual o jornalismo mais desistiu da gente que a gente dele: jornalista idealista sofre mais que mulher apaixonada por cafajeste. "A gente não vai voltar pro jornalismo, né, mano?", e eu respondi que não. E a dor com que ela ouviu isso - não sei se acreditando ou não - foi a mesma com a qual eu disse, porque soou melancolicamente definitivo. Porque veio acompanhado de um "e o que a gente faz então?" que ficou subentendido pra nós duas, e que cada uma vai responder a seu modo. 

A verdade é que, com essa crise braba, revistas acabando e tal, não dá pra se ter muita esperança de que conteúdos opinativos de qualidade, e aquele jornalismo literário ou "new journalism" que a gente curte tanto, vá escapar incólume. Talvez, esse estilo seja o primeiro que acabe. Não vende, os textos são grandes, exigem uma certa dose de imaginação do leitor (que não tem tempo nem saco pra devaneios lendo o noticiário de manhã no trem lotado)...Em suma, aquele jornalismo utilidade-pública, ou aquela reportagem que é quase um romance, já era. Vai sobrar, sei lá, a Veja. Argh.

Oremos.

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